domingo, 31 de agosto de 2014

INTOLERÂNCIA NOS ESTÁDIOS


ZERO HORA 31 de agosto de 2014 | N° 17908


JONES LOPES DA SILVA


COMO ESTANCAR O RACISMO

INCONFORMADO COM AS ofensas racistas nos estádios, no início de julho movimento de gremistas promoveu seminário para coibir em estatuto a discriminação, com base em documento inédito no futebol brasileiro, redigido por sociólogo gaúcho. Dois meses depois, porém, medida não avançou



O procurador federal Renato Moreira viajou sexta-feira ao Rio, por coincidência, no mesmo voo em que a delegação do Santos retornava para casa. Havia um silêncio incomum entre o grupo de jogadores, apesar dos festejáveis 2 a 0 sobre o Grêmio. Bem perto da poltrona de Moreira, o goleiro Aranha se mostrava abatido. Recém havia registrado na delegacia queixa pelas agressões raciais sofridas na noite anterior na Arena.

Moreira, vice-presidente do Grêmio, ele próprio o mais envolvido em soluções internas contra o racismo, não se sentiu com coragem de falar com o goleiro. Estava envergonhado demais.

Quando o dirigente chegou ao flat onde se hospeda no Rio, o porteiro, que já o conhecia, mostrou uma camiseta do Grêmio a um canto da portaria e disse:

– Eu ia pedir um autógrafo, mas desisti. Depois daquilo que aconteceu ontem (sexta-feira), vou deixar para lá.

De novo Moreira ficou sem jeito, e se sentiu um derrotado no combate ao racismo, apesar dos alertas no telão da Arena antes do jogo de quinta-feira, das faixas contra a discriminação puxadas por Zé Roberto e Marcelo Grohe e das campanhas veiculadas pelo clube na tentativa de coibir os gritos de “macacos” e os grunhidos de “hu,hu,hu” da torcida.

O que fazer? Em julho, o grupo político de Moreira, Movimento Grêmio Vencedor (MGV), promoveu um seminário sobre ações concretas contra discriminação. Discutiram a proposta do sociólogo Edilson Nabarro, 60 anos, diretor do Departamento de Programas de Acesso e Permanência e das Ações Afirmativas da UFRGS, negro e gremista “de família”.

Segundo Nabarro, nada adianta ser contra o racismo se o clube não adota regulamento interno com prevenção e punição definidas em estatuto.

– É preciso um protocolo de combate à violência e ao racismo, previsto em estatuto, a responsabilidade é do clube – defende Nabarro, há anos ligado aos movimentos negros do Estado.

O MGV convidou ao seminário os mais de 300 conselheiros e muitos raros apareceram. Apenas o presidente do Conselho, Milton Camargo, esteve presente nos painéis que debateram o documento “Compromisso com a cultura da paz nos estádios e erradicação do racismo e todas as formas de intolerância” – o primeiro ordenamento de ações contra o racismo de que se tem notícia já apresentado dentro de um clube brasileiro.

PROPOSTAS EDUCADORAS PARA DIRIGENTES E TORCIDA

Também o juiz de Direito Marco Aurélio Xavier, o procurador do TJD, Alberto Franco, e representantes do Juizado Especial Criminal (Jecrim) e da FGF deram sustância ao encontro, que, apesar de pioneiro, não evoluiu, passados dois meses.

As propostas são educadoras. Começam pelos objetivos de conscientizar dirigentes, comissão técnica, jogadores e sócios, promover ações humanitárias, abolir os “cânticos com conotação racistas ou de desprezo a outros grupos discriminados”, alertar as organizadas sobre “as consequências individuais e coletivas do racismo”, estimular seminários contra o violência. Passam pela metodologia de avaliações periódicas, com comissões de relatorias e acompanhamentos de pessoas ligadas ao direitos humanos, OAB, FGF, sindicato dos jogadores e movimento negro.

A ideia, embora discutida no âmbito do Grêmio, é fazer do projeto uma referência ao futebol brasileiro.

– Seria um exemplo aos outros clubes do país, que também sofrem com atos racistas entre as torcidas – propõe Nabarro, que há dois anos lida com o assunto.

Em 2013, o sociólogo encontrou o presidente Fábio Koff na churrascaria Barranco, em Porto Alegre. Incomodado com os insultos endereçados a jogadores negros no Olímpico e depois na Arena, Nabarro foi conversar com o dirigente:

– Senhor Fábio Koff, sou um gremista inconformado com as ofensas racistas no estádio.

O presidente ouviu Nabarro e lhe disse que um de seus assessores o procuraria outro dia para promover um encontro à procura de soluções. Até hoje Nabarro aguarda o tal assessor.

A aproximação com Moreira ocorreu mais tarde, porque ambos trabalham na UFRGS.

– Ainda vamos realizar um segundo seminário e, só então, redigiremos um documento definitivo, a ser encaminhado à direção do Grêmio – disse Moreira.

Também a arbitragem nacional precisa se reciclar. No país inteiro não há orientações de como o árbitro deve proceder quando surgem manifestações racistas em campo. Na quinta-feira, o juiz goiano Wilton Pereira Sampaio não deu atenção aos alertas do goleiro Aranha, que sofria as ofensas em durante a partida.

Numa primeira versão da súmula do jogo, nem registrou as agressões. Somente na sexta-feira pela manhã, depois da repercussão nacional, houve adendo à súmula, com a inclusão do caso.

– Sem regra, o árbitro teme enfrentar o assunto (do racismo). Pode ser prejudicado pelo clube ou por quem comanda a arbitragem – diz Márcio Chagas, ex-árbitro, hoje comentarista, vítima de um caso de repercussão de racismo no futebol.

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