domingo, 13 de setembro de 2015

AUSÊNCIA SENTIDA PARA SEMPRE





ZERO HORA 13 de setembro de 2015 | N° 18293


PAIXÃO QUE MATA



O casal Sara e Vítor Lima há oito meses curte o filho pelos dois celulares que eram do garoto. Quando bate saudade, a mãe diarista e o pai pedreiro rebuscam nos aparelhos os vídeos em que Maicon Douglas aparece sorridente e festivo. As imagens são dele entre adolescentes de torcida organizada do Novo Hamburgo no entorno do Estádio do Vale. Dão gritos de guerra, pulam com energia, se jogam uns contra os outros e se chocam no ar com os peitos numa demonstração de força ao som de uma charanga. Os vídeos são a única forma de os pais reverem a vivacidade do filho de 16 anos, que planejava fazer Direito na Ulbra e tinha a tatuagem de Jesus Cristo no peito.

Maicon foi morto em 1º de fevereiro. Depois de um tumulto de organizadas ao final de Aimoré e NH em São Leopoldo, o garoto foi alvejado nas costas. Oito PMs estão indiciados. Não bastasse a perda, Sara e Vitor com frequência são afetados por tremores quando avistam uma viatura ou um policial fardado na rua.

– Chega a dar um troço. Quando a gente vê uma viatura e um policial, o coração dispara, está louco, é horrível... Não dá para generalizar, mas a gente vê viatura e fica assim... meus Deus. É cruel – conta Sara.

Os policiais acusados do crime são suspeitos de trocar o projetil quando Maicon foi atendido no hospital. Flagrada pelas câmeras internas, a trama reforçou o sentimento de insegurança da família:

– Ai, nossa (choro)... Eu nunca vou esquecer ele (o marido, Vítor) chegando sozinho. Com aquele saco de roupa na mão... Eu perguntei: Cadê o Maicon? Ele só dizia: vamos na tua mãe. Perguntei de novo. Aí ele disse, o Maicon morreu. Não acreditei.

Aos 37 anos, Sara é uma pessoa permanentemente comovida com a perda do filho.

– Eu não tenho ódio, não consigo. Mas quero um pouco de paz, além de justiça. Não desejo este sofrimento para ninguém – diz Sara.

Ao casal restou a filha Vitória, 12 anos. É ela quem esquadrinha os celulares do mano e repassa aos pais em momentos estratégicos.

– Ao ver os vídeos, tento procurar uma alegria, mas a dor supera tudo – confessa a mãe.

Também em Novo Hamburgo, quase todos os dias Maria Inês conversa com o filho Gabriel. Ela senta com ele à mesa na hora do almoço e fala providências de casa, no Jardim Mauá. A cama do rapaz está estendida, com a colcha vermelha e branca abaixo de um quadro com o símbolo do Inter à parede.

Maria Inês trata do filho como se ele estivesse vivo. Gabriel Elói de Oliveira, o Feijão, foi morto em junho de 2008, aos 23 anos. Ele e o amigo Jeferson Alves Ferreira, 21, caíram executados em São Leopoldo, vítimas de rixas de torcidas organizadas.

Caçula e único homem de três filhos, Gabriel vivia com a mãe, viúva há quase 30 anos e funcionária aposentada da biblioteca da escola Ana Neri. Passados sete anos, a mãe de Gabriel convive com um filho imaginário, recurso que ela encontrou para abrandar a dor da ausência que ainda hoje a faz chorar pelos canto da casa.

Por isso, aos 65 anos, Maria Inês dirige palavras ao filho inexistente. Já se submeteu a tratamento psiquiátrico, viveu debaixo de forte medicação e acostumou-se à relação com a ideia do filho. É reconfortante. As filhas condenam, mas ela tem a aprovação médica.

– Eu falo com ele todos os dias. Se está me fazendo bem, se me permite esquecer a dor, vou continuar convivendo assim com o meu filho – diz a aposentada. – Aquilo não é idade de se perder um filho, ninguém merece isso.

O quarto de Gabriel é o mesmo de 28 de junho de 2008, o dia da morte. À esquerda da porta, sobre uma máquina de costura que serve de cômoda, estão uma velha chuteira de futsal e um tênis que recém havia ganho. A toalha é um manto colorado. Abaixo da máquina estão um chinelo empoeirado e uma chuteira com a sola descolada.

A cama se mantém encostada à parede vermelha com espelho, quadros com um salmo bíblico, a foto do Inter campeão do mundo e dois símbolos do clube. Sobre um rack há recortes de jornais e caixas de correspondências trocadas com torcidas de outros clubes. O DVD do título mundial está junto a troféus, medalhas e roupas.

O que identifica Feijão com as organizadas do Inter são decalques estampados no guarda-roupas. É neste ambiente que a mãe passa a maior parte do tempo. Hoje a rotina é menos traumática:

– Deixei de assistir ao futebol por muito tempo e só voltei nos últimos anos. Vejo os jogos do Inter pela TV e peço: “Ah, Gabi, ajuda eles a fazer um golzinho!”

Gabriel fez parte de organizadas desde cedo. Quando as brigas no Trensurb engrossaram, ele organizou excursões de ônibus que conduziam torcedores de São Leopoldo e Novo Hamburgo ao Beira- Rio. O ponto de encontro em São Leopoldo era o bar e casa do colega colorado Jeferson Ferreira, no Centro. Em 2004, Feijão foi acusado de estar envolvido na morte do adolescente gremista Tadeu Junges. Que era seu amigo. Quando soube da morte, ficou transtornado. De madrugada, acordava aos gritos:

– Não, Tadeu! Não, Tadeu!

Gabriel ficou três meses no Presídio Central, e mais tarde foi inocentado. Mas restou marcado.

Em agosto de 2007, ele e Jeferson foram baleados por Taquara, da Super Raça do Grêmio, depois condenado no processo por tentativa de homicídio.

O tiro nas nádegas se alojou no intestino. Os agressores prometeram mais: na próxima vez, seria na cabeça. Em junho do ano seguinte, aconteceu a execução no mesmo bar de São Leopoldo de onde partiam as excursões para o Beira-Rio.

– Eu não queria acreditar que o Gabriel estava envolvido neste mundo. Ele fazia faculdade de Educação Física na Feevale, tinha todo o amor em casa e trabalhava na empresa da irmã. Como imaginar uma tragédia dessas? – conta Maria Inês.

Corroída pela culpa, cobrando-se pela falta de atenção ao filho, a mãe logo tentou o suicídio.

A dor dos Oliveira é um espelho do trauma vivido por famílias assoladas pela violência fatal no futebol. Como aconteceu com os Bonow, em Pelotas. Há momentos em que Gimena sente que o pai Gilberto, empresário e torcedor do Pelotas, morto em 2003, ainda está presente.

Até hoje é complicado relembrar o momento em que soube da morte. O irmão Dimitri acompanhava o pai na volta de um clássico Bra-Pel. Estavam próximos ao centro da cidade quando depararam com um grupo de torcedores xavantes. Não houve como escapar: foram espancados, e o coração do empresário não aguentou. Um infarto o levou à morte.

Primogênita, Gimena administra a joalheria da família em uma galeria no Centro. Do outro lado, o irmão Dimitri cuida da relojoaria onde o pai trabalhava. Gimena chora ao contar que, até hoje, tem a impressão de que vai levantar o telefone e falar com Gilberto pela linha interna que conecta as duas lojas.

– Foi muito difícil, até porque não tive a chance de me despedir dele. É algo surreal, parece mentira. Sinto falta do conselheiro, do amigo. Minha mãe sempre foi a educadora, que nos impõe os limites – afirma.

Do outro lado da galeria, Dimitri mostra-se mais fechado ao falar do incidente em que foi vítima. Não deixa que a emoção transpareça em seu relato, mas orgulha-se de ter mantido um dos hábitos preferidos do pai. Três dias após a tragédia, o Pelotas enfrentaria o São José-RS pela primeira fase da Série C do Brasileirão. Perguntava-se nos círculos próximos a Dimitri se ele continuaria a frequentar a Boca do Lobo.

– Eu fui para mostrar que não ia abandonar. Meu pai me levava desde pequeno até em treinos. Pensei que ele não ia querer que me afastasse – diz.

FAMÍLIAS DESOLADAS PELA IMPUNIDADE DO HOLIGANISMO



ZERO HORA 13 de setembro de 2015 | N° 18293



PAIXÃO QUE MATA. Famílias desoladas pela impunidade



Quando está sozinha em casa, dona Eva Goularte chora a morte do filho Emerson, crime que completou o oitavo aniversário em junho passado. Assim, escapa das reprimendas da família que a aconselha a seguir em frente. Mas como ir adiante se os suspeitos nem sequer foram a julgamento?

– Meu filho foi morto feito um bicho – diz, para logo depois se corrigir: – Pior do que um bicho.

O caso de Emerson é uma das seis mortes que ainda aguardam julgamento entre as 15 envolvendo o futebol desde o ano 2000.

Os processos julgados são sete, entre condenações e absolvições. E há dois com suspeitos que acabaram mortos.

Apenas um dos processos que aguardam julgamento corre no prazo, o da morte do garoto Maicon Douglas, alvejado em 1º de fevereiro deste ano em meio a um tumulto de torcida em Novo Hamburgo (leia na página 32). Suspeitos, quatro PMs foram denunciados e esperam sentença.

A dor de dona Eva começou no dia 20 de junho de 2007. Ao final do jogo em que o Grêmio perdeu no Olímpico a Libertadores para o Boca Juniors, o colorado Emerson Goularte foi ao centro de Dom Pedrito comprar uma carteira de cigarros. Gremistas reunidos em um bar lamentavam a derrota, e Emerson teria entrado em uma discussão motivada pelo futebol.

A reação foi violenta. Seis torcedores bateram em Emerson. Entre os acusados das agressões estão integrantes de famílias conhecidas na cidade.

Oito anos depois, após uma sequência de recursos jurídicos, o julgamento ainda não foi marcado.

Desde o dia da tragédia, os Goularte recorrem a um controle emocional incomum e afastam qualquer tentação de vingança. Um grupo de amigos de Emerson teve de ser demovido pela família da ideia de fazer justiça com as próprias mãos. Também os vizinhos tiveram de ser acalmados.

– Nada de revidar. Vamos esperar o que vai acontecer – ensinava seu Walter, o pai.

O caso se arrasta nos tribunais, e os acusados circulam pela cidade. As filhas da vítima, Jaíne e Bruna, com frequência deparavam com um dos réus na cidade.

Walter, Eva e Lillian, a irmã mais velha, costumam ser indagados sobre o andamento do caso. Quando contam que ninguém foi punido até hoje, não raro ouvem a cobrança: “E vocês não vão fazer nada?”.

– O julgamento não vai trazer meu irmão de volta, mas tenho certeza de que será um alívio enorme – resume Lillian, que morava com Emerson e, de tão doída, demorou cinco meses para conseguir entrar em seu quarto após a morte.

Fora o caso de Maicon, de 2015, os demais processos se arrastam, em média, em prazo acima de seis anos e meio.

– É normal que as famílias tenham esta sensação de impunidade. Por isso procuramos trabalhar de forma dedicada nestes processos – destaca Sérgio Luiz Rodrigues, da Promotoria de Justiça Criminal de São Leopoldo.

Cansado de esperar por justiça, Osmar Cierco pensou em organizar passeata para comover a comunidade de Gravataí, em pressão pelo julgamento do caso do filho. Daniel foi morto enquanto comemorava o título da Libertadores de 2006 em um trailer de Cachoeirinha.

Os colegas do Direito da Unisinos lotaram ônibus e compareceram ao velório. Hoje formados, os ex-colegas também pressionam pelo andamento do processo. É o caso de João Carlos de Jesus, um dos melhores amigos de Daniel. Tornou-se advogado da família. É com ele que Oscar se informa sobre o processo.

– Imaginem a situação dos pais de uma pessoa abatida covardemente. O mínimo é a briga pela justiça. Mas é preciso aguardar, porque o sistema tem sido assim – desabafa João Carlos.

PAIXÃO QUE MATA



ZERO HORA 13 de setembro de 2015 | N° 18293


ANDRÉ BAIBICH E JONES LOPES DA SILVA

Paixão que mata


Em nome da paixão e da intolerância, a violência tatuou marcas no futebol. Nos últimos 15 anos, desavenças entre torcidas, brigas de grupos organizados e rixas incendiadas pelo ódio provocaram 15 mortes de gaúchos, uma delas em solo catarinense. Embora nos estádios o tumulto pareça frequente, é fora deles que se construiu a média de uma vítima por ano neste século.

Por ter celebrado com barulho demais o título do Inter na Libertadores de 2006, Rodrigo Azambuja foi morto pelo vizinho. Por estar no local onde antes havia confusão, o torcedor de Grêmio e Novo Hamburgo Maicon Douglas de Lima foi baleado pela polícia. Por terem se envolvido em um mundo violento de juras de morte e vinganças entre torcidas organizadas, Gabriel Oliveira e Jeferson Ferreira foram executados.

Zero Hora contatou parentes das vítimas e viu como cada um lida com a dor de uma perda inexplicável. Há quem mantenha tudo como antes – quarto, camisetas, adesivos e pôsteres. Outros preferem se livrar dos objetos e doar o que sobrou. Um simples olhar para a bandeira do clube detona o sofrimento, e o dia a dia torna-se insuportável. Familiares se desmancharam em lágrimas com a lembrança do filho morto. Outros se recusaram a falar, como se afastassem um tormento.

Mãe de Anderson Livi, o único que morreu dentro de um estádio ao ser atingido por bomba, Eli embargou a voz e não quis atender a reportagem. Maria Inês, mãe de Gabriel, morto a tiros em 2008, recorre a antidepressivos.

O perfil das vítimas torna tudo mais trágico. Tinham 27,6 anos na média, que só chega a tanto porque entre elas estão dois homens com 61 e 62 anos. Não fossem eles, a média cairia para 22 anos. A morosidade da Justiça é agravante na dor: existem casos há oito anos aguardando uma sentença.

Zero Hora conta nesta edição e na de segunda-feira como parentes tocam a vida entre a indignação contra a impunidade, o medo de ser o próximo alvo e o controle da sede de vingança.

andre.baibich@zerohora.com.br
jones.silva@zerohora.com.br